De acordo com o relatório divulgado pelas Nações Unidas sobre segurança alimentar, em julho de 2021, mas com um levantamento baseado em 2020 durante a pandemia, são 811 milhões de pessoas passando fome no mundo, ante 690 milhões divulgados no relatório anterior, que tinha 2019 como base.
A agência da ONU aponta a Covid-19, a alta nos preços dos alimentos e a desvalorização das moedas como fatores que impulsionam a ameaça. O documento é a primeira avaliação global desse tipo em tempos de pandemia. Ele é publicado em conjunto pela Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FAO), UNICEF, WFP e OMS.
Alguns detalhes chamam a atenção:
– O estudo mostra que mais de 2,3 bilhões de pessoas (ou 30% da população global) não tiveram acesso à alimentação adequada durante todo o ano de 2020;
– A fome disparou em termos absolutos e proporcionais, ultrapassando o crescimento populacional: estima-se que cerca de 9,9% de todas as pessoas tenham sofrido de desnutrição no ano passado, em comparação a 8,4%, em 2019.
– O aumento mais acentuado da fome foi na África, onde a prevalência estimada de desnutrição – em 21% da população – é mais do que o dobro de qualquer outra região.
O que diz o Papa sobre o atual contexto?
Na oportunidade de escrever uma mensagem para a 42ª sessão da Conferência do Fundo das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em 18 de junho deste ano, o Papa disse quea reconstrução das economias no pós-pandemia oferece uma oportunidade de inverter a rota e ajudar os mais afetados pelas crises.
O Papa pediu à FAO e à Comunidade internacional mais esforços para alcançar a autonomia alimentar, tanto através de novos modelos de desenvolvimento e consumo, quanto através de formas de organização comunitária que preservem os ecossistemas locais e a biodiversidade:
“Enquanto alguns semeiam tensões, confrontos e falsidades, nós, por outro lado, somos convidados a construir com paciência e determinação uma cultura de paz, que seja voltada para iniciativas que abracem todos os aspectos da vida humana e nos ajudem a rejeitar o vírus da indiferença“.
Francisco aponta uma economia em escala humana, não apenas sujeita ao lucro, mas ancorada no bem comum, amiga da ética e respeitadora do meio ambiente. A pandemia deveria ensinar isso: a inverter a rota seguida até agora, investindo num sistema alimentar global, capaz de resistir a crises futuras.
Segundo o pontífice, isso inclui a promoção de uma agricultura sustentável e diversificada que leva em conta o papel precioso da agricultura familiar e das comunidades rurais. Ele observa que são exatamente aqueles que produzem alimentos que sofrem com a falta ou escassez:
“Aqueles três quartos dos pobres do mundo que dependem principalmente da agricultura para seu sustento que, no entanto, estão isolados dos mercados, da propriedade da terra, dos recursos financeiros, das infraestruturas e das tecnologias”.
Em outra oportunidade, em julho de 2021, o Papa Francisco, falou à Pré-Cúpula sobre sistemas alimentares da ONU, em Roma, junto aos representantes de mais de 110 governos do mundo e, entre eles, o Brasil. Na mensagem, o Santo Padre destaca: “Produzimos comida suficiente para todas as pessoas, mas muitas ficam sem o pão de cada dia. Isso ‘constitui um verdadeiro escândalo’, um crime que viola direitos humanos básicos. Portanto, é um dever de todos extirpar esta injustiça através de ações concretas e boas práticas, e através de políticas locais e internacionais ousadas.”
Enquanto isso, no Brasil…
O país voltou ao mapa da fome. Para se ter uma ideia, segundo dados da FAO, ONU e OMS, entre 2014 e 2016 os números apontavam cerca de 3,9 milhões de brasileiros em situação de fome e entre 2018 e 2020 a soma sobre para 7,5 milhões. Além disso, são mais cerca de 50 milhões de brasileiros em situação de risco alimentar.
“Crise Humanitária em São Paulo”
“Crise humanitária em São Paulo”: Esta é a frase escrita todos os dias pelo Padre Júlio Lancellotti em suas redes sociais. Pároco da Igreja de São Miguel Arcanjo, na Mooca, ele atua junto à população de rua há 35 anos, por meio de doações de alimentos, roupas, itens de higiene pessoal, e também como alguém da escuta e do afeto.
Lancellotti é vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo e sempre destaca que tudo o que faz é em nome da Igreja Católica. “Jesus está do lado dos fortes ou dos fracos? Hoje em dia ele estaria no palácio de governo ou na Cracolândia tomando bomba? A gente insiste em buscar Jesus na Igreja, mas ele insiste em ir para debaixo do viaduto”, afirmou o Padre em entrevista ao Jornal El País.
O Padre, que faz questão de todos os dias publicar uma foto no Instagram denunciado os fatos, defende políticas publicas com uma mudança de abordagem, onde o foco não é moral, e sim em saúde mental, saúde pública, saúde de afeto. “Onde não se jogue bombas, e sim direitos”, defende em suas declarações públicas.
Em setembro, o A12 acompanhou a rotina do Padre Júlio e colheu a opinião dele sobre o assunto. Ele diz que se pergunta porque as pessoas ficam admiradas com o que realiza, sendo que deveria ser uma realidade de toda a Igreja. Veja no vídeo abaixo!
Um Pontinho de Luz no fim do túnel
Luiz Gabriel Tiago, conhecido como “Senhor Gentileza”, escritor, palestrante, Fundador e Líder da Rede Mundial de Gentileza Pontinho de Luz, já foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 2017, 2018 e 2019 pela atuação no “Pontinho de Luz”; empresa sediada em sua terra natal (Niterói-RJ), que movimenta uma rede de solidariedade com quase 200 mil pessoas, responsáveis por ações sociais realizadas no Brasil e no exterior, cujos recursos advêm de treinamentos e doações. A Pontinho de Luz, arrecada alimentos, remédios, fraldas e qualquer tipo de mantimentos para quem precisa.
A Pontinho de Luz é uma iniciativa incrível de distribuição de alimentos e roupas. Atualmente vocês conseguem atingir quantas pessoas?
Luiz Gabriel Tiago – A Rede Pontinho de Luz atua em várias frentes em todos os continentes. Nosso trabalho voluntário inclui desde a conscientização da importância da Gentileza para a construção de uma cultura de paz a alimentar pessoas e famílias inteiras em situação de vulnerabilidade. Até hoje assistimos mais de 2 milhões de pessoas em países como o Brasil, Haiti, Venezuela, Iêmen, Índia, Uganda, Angola e Moçambique.
Você acredita que o problema da fome no Brasil é estrutural?
Luiz Gabriel Tiago – A fome no Brasil é histórica e não está acontecendo por causa da pandemia somente. É claro que a pandemia e todas as restrições acentuaram a vulnerabilidade, mas a desigualdade sempre fez parte do nosso cenário. Por mais que existam movimentos, instituições, coletivos e iniciativas individuais para erradicar a fome, não serão suficientes para extinguir esse mal. Temos uma estrutura precária e amadora na administração de temas como a equidade, educação, inclusão e assistência social – por mais que existam pessoas e profissionais altamente capacitados para isso.
Por que não existem Políticas Públicas capazes de zerar a fome concretamente?
Luiz Gabriel Tiago – Porque não existe o interesse de distribuir de forma justa a renda nesse país. Quanto mais pessoas em situação de miséria existirem, melhor será a forma de manobrá-las politicamente a seu favor. A pobreza é uma aliada de interesses em campanhas, por exemplo. Se há uma família passando necessidade, não é difícil conquistar seu apoio através de uma cesta básica. A fome não será zerada com a distribuição de alimentos. A gente consegue alimentar uma família por um período. Quando os insumos acabam, a fome volta.
É um ciclo vicioso e precisa de investimento público em educação. Pessoas com formação escolar, capacitação e uma profissão têm consciência, inclusive consciência-política. Podem criar suas próprias oportunidades e reverter dignamente a condição de vulnerabilidade de suas famílias. Assim deixariam de depender da solidariedade de movimentos humanitários e outras instituições. Porém, se isso acontece, deixam de ser massa de manobra de alguns políticos inescrupulosos e de grupos criminosos como a milícia e tráfico de drogas.
O Brasil saiu do mapa da fome em 2014, mas atualmente já conta com 50 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar. Estamos retrocedendo?
Luiz Gabriel Tiago – A cada dia retrocedemos em questões como a miséria, direitos humanos e cultura de paz. Demos passos importantes nas discussões sobre esses temas, mas não avançamos em questões de ordem prática. A pobreza é real e não é um mito. A intolerância e falta de empatia estão se sentindo cada vez mais confortáveis em se pronunciar. Por isso é importante que – todos aqueles que sentem dor, são agredidos ou estão vivendo a miséria – se pronunciem. Quanto mais a sociedade souber da sua existência, mais poderemos criar estratégias de pacificação e ajuda humanitária.
Promover a paz inclui oferecer soluções para que possamos viver numa sociedade justa, igual para todos e saudável. Os discursos não comovem mais. Precisamos de referências legítimas de pessoas que arregaçam as mangas e realmente fazem alguma coisa pelo próximo. Em pleno século 21 deixamos de ter modelos a serem seguidos como Irmã Dulce, Betinho ou Zilda Arns. Em quem nos inspiramos hoje? Somos carentes disso pois os holofotes estão virados para o endeusamento de corruptos, digital influencers ou jogadores de futebol.
O lugar da caridade em meio ao caos da fome
O que é pouco para você, pode ser muito para quem precisa. Na avaliação de Padre Pedro Cunha, o Evangelho diz que um copo de água doado a quem precisa, será recompensado e não será esquecido.
“O Samaritano olhou aquele pobre caído e ele não pensou se ele podia ou não podia ajudar aquele que precisava. A nossa sociedade ainda é egoísta, egocêntrica, o ser humano tem por isso, muitas vezes perdido o sentido da vida. A partir do momento em que formos capazes de assumir algo pelo outro e pela sociedade, e não ficarmos esperando o que os outros e a sociedade podem fazer por mim, é que poderemos encontrar sentido nas coisas. Pergunte-se: o que eu posso fazer para melhorar a vida do outro que está perto de mim? o que eu posso fazer para melhorar o lugar onde eu vivo, a rua onde eu moro? o que que eu posso fazer por aquele pobre que está sentado na calçada?”
Já o missionário redentorista e diretor das Obras Sociais da congregação, Ir. Mário André, diz que ajudar o pobre e ser caridoso é enxergar o próprio Cristo no irmão que mais precisa.
Fonte: A12