“O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum” (Laudato si’ n. 13)
No princípio era a Misericórdia e a Misericórdia é o nome bíblico de Deus. Por ela tudo foi criado.
Deus é Criador e das suas “entranhas de misericórdia” faz brotar novidades surpreendentes em meio ao “caos”. A Criação aparece então como um grande gesto de Misericórdia e todas as expressões de vida tornam-se a história da fidelidade dessa misericórdia gratuita. E foi do transbordamento da misericórdia divina que brotou a vida, pois a misericórdia é sempre criativa, original: ela cria e re-cria continuamente e desencadeia um movimento expansivo em direção à plenitude.
Segundo os relatos da Criação, a Misericórdia é criadora, é poeta, é pintora, é cantora – é irradiante, expansiva. Deus é Pai-Mãe e artista da Criação: sua obra é eternamente “obra aberta”, possível de ser re-visitada, contemplada, admirada… Um universo que é fecundado pela Misericórdia de Deus é um universo abençoado, salvo e seguro.
A misericórdia é a luz e a chave de nossa vida tão preciosa e frágil, de nosso pequeno planeta tão vulnerável, do universo imenso e interrelacionado e do qual fazemos parte.
Todo o Universo é um suspiro do amor misericordioso.
As concepções judaica e cristã do mundo e do tempo rompem com a visão cíclica dos gregos antigos, desenvolvendo mais uma perspectiva histórica de um tempo aberto ao futuro e no qual há lugar para a novidade. Muitos textos bíblicos falam da criação como um processo e que deve, sim, recomeçar cada vez que o ser humano a corrompe. “O Senhor criou algo novo sobre a terra” (Jer. 31,22)
A misericórdia fecunda o universo e o torna fecundo. Conforme o Gênesis, Deus dá à terra e ao mar capacidade para produzir vegetais, animais e peixes, segundo a sua espécie.
A Criação não é só criada; é co-criadora, geradora de vida, pois cria, protege, sustenta… Ela prolonga e participa do ato criador de Deus, pois em tudo encontramos “faíscas” de misericórdia.
Segundo Walter Kasper “o testemunho de toda a Escritura, a misericórdia é o atributo de Deus que ocupa o primeiro lugar na autorrevelação de Deus na História da Salvação; é o lado visível e operativo para fora da essência de Deus, que é amor”.
Na Sagrada Escritura o termo “rahamim” traduz o caráter “generoso” da misericórdia: um amor com potência regenerativa: aproxima, perdoa, resgata, cura, refaz. É amor que reconstrói a vida.
“A misericórdia é o segundo nome do Amor”.
A expressão “rahamim” é sintetizadora de sentimentos de compaixão, misericórdia, pela força criadora de afirmar a vida em meio ao caos.
O coração de Deus é o de um Deus com “entranhas de misericórdia”, entranhas que se comovem e que O fazem sair e transbordar-se como amor terno sobre a Criação e sobre a humanidade. Nesse sentido, a Criação é o transbordamento da misericórdia divina.
As páginas do AT estão cheias de afirmações e de atitudes de misericórdia de Deus, inclusive com respeito a todos as criaturas. Todas elas são fruto do Amor de Deus, e portanto de sua misericórdia.
A Criação inteira tem um centro habitado pela Misericórdia e Ternura de Deus, que sustentam a Aliança do Criador com a Criação e com a Humanidade inteira; ao mesmo tempo, é a Misericórdia que move o ser humano a viver a aliança relacional com todos e com tudo.
Por isso, somos “seres orbitais”. Como planetas, vivemos em busca de um Sol em torno do qual gravitar. Estamos sedentos da luz da misericórdia. Na cotidiana convivência com os nossos semelhantes e na rela-ção amorosa com todas as criaturas, somos todos quais partículas localizadas no espaço; porém, quando nos deixamos banhar pela misericórdia divina, somos onda que se propaga, todo o nosso ser flui e, de fato, estamos lá onde o nosso coração nos arrebata.
Só a Misericórdia é capaz de deter a dinâmica da ruptura das relações. E nesta Misericórdia não está só Deus, mas também as demais criaturas, o cosmos inteiro.
Ou seja, graças a uma “conspiração misericordiosa” da Criação, não fomos aniquilados pelo caos do pecado, senão que existe uma consistência relacional e solidária no mundo criado por Deus que faz com que não sucumbamos, ainda que façamos todo o possível por perder-nos.
Deixar-nos conduzir pela Misericórdia leva a sairmos de nós mesmos e a abrir-nos à contemplação sobre qual é o verdadeiro modo de ser e de existir que restaura a imagem e semelhança originais e que devolve ao mundo sua condição paradisíaca.
Movidos pela misericórdia reconstrutora, é urgente refazer o caminho de volta, como filhos pródigos, rumo à ”comunidade universal de vida” e restabelecer a re-ligação com o Todo e com todos.
Se há algo que caracteriza nosso tempo é a nova consciência de ser rede-comunhão-interconexão-unidade. Encontramo-nos em um tempo surpreendente: as espetaculares inovações tecnológicas nos convidam a entrar numa inimaginável rede de informações, imagens, conexões… Nosso planeta está dotado de uma complexíssima textura de comunicações.
“Deixar-se enredar pela misericórdia” é implicar-se na vida daqueles que dela mais precisam, ser presença misericordiosa em situações de fronteira, colocando nossas energias, nossa formação, nossa vida a serviço… para criar, alimentar e sustentar os laços humanos, o cuidado com a natureza, o fortalecimento das relações sociais, a criação de estruturas políticas e econômicas que tornem possível a solidariedade entre todos os seres humanos e aponte para um mundo fraterno e justo.
Este tempo pede de nós cristãos “uma espiritualidade da conexão”, da busca da experiência da Unidade, de estender pontes entre culturas, raças, sexos, crenças religiosas, ideologias, de romper fronteiras a partir da não-violência, de criar redes que inter-atuam. Precisamos sair de nossos pequenos círculos para criar vínculos com tantos grupos e organizações sociais, movimentos ecológicos que buscam outra globali-zação, a globalização da solidariedade, da misericórdia, da partilha…
Este novo mundo que emerge pede de nós uma nova espiritualidade das relações misericordiosas: chegou a hora de renunciar às relações de poder; de dominação-submissão, para viver relações humaniza-doras com a marca da “misericórdia”, reflexo do Deus Misericórdia em quem cremos. Isso tornará possível que a comunidade universal de vida deixe transparecer os valores evangélicos de justiça, amor, paz, cuidado, libertação…
Nós cristãos somos chamados a articular redes e desarticular pirâmides; articular participação e desar-ticular hegemonias; articular os sonhos de outro mundo possível, e desmanchar teorias da “desigualdade natural”. A comunidade cristã articula redes de esperança. Essas redes somam forças, criam energias, estabelecem comunicação. Com isso, acontecerá um novo fluxo energético e pentecostal no interior da nossa “Casa comum”. O Espírito Santo também atua nos sites, bites, satélites… movendo a história na construção da grande rede da misericórdia solidária.
Textos bíblicos: Lc. 15,11-32 Jo. 8,1-11 Os 11 Is 65,17-25
Na oração: Recorde o que Deus sonhava com a criação do mundo: a felicidade dos primeiros pais; a terra não é inimiga do ser humano, mas é rica e generosa; tudo é de todos; há uma perfeita harmonia entre o ser humano e as criaturas; reina perfeita fraternidade: a humanidade como uma só comunidade…
Despertar o impulso para ser presença inspiradora e re-construtora, diante de um mundo fragmentado e dividido.
Entrar no “fluxo” da misericórdia divina: ser canal por onde circula o amor misericordioso em favor dos outros.
Somos chamados a exercer o “ofício da misericórdia”.
Pe. Adroaldo Palaoro sj