O Instrumentum laboris (instrumento de trabalho, em latim) para o Sínodo da Sinodalidade divulgado hoje (20) pela Santa Sé abre o que promete ser uma ampla discussão sobre a visão do papa Francisco de uma Igreja mais inclusiva, descentralizada e “à escuta”.
O texto altamente aguardado será a base da 16ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, em outubro. O documento baseia-se em sessões de escuta realizadas em nível diocesano, nacional e continental em todo o mundo. Nele, há tópicos polêmicos como ordenação de diaconisas, fim do celibato sacerdotal, questões LGBTQ e criação de novos órgãos institucionais para maior participação do “Povo de Deus” na tomada de decisões na Igreja.
Algumas das questões propostas para discussão sugerem mudanças importantes na forma como a Igreja opera. O documento defende a adoção de um processo “sinodal” aberto que envolve diálogo e discernimento contínuos. A abordagem é tão diferente, diz o documento, que novos programas de formação precisarão ser desenvolvidos “em todos os níveis da vida eclesial e para todos os batizados”. Mesmo os candidatos ao ministério ordenado “devem ser treinados em um estilo e mentalidade sinodal”.
O texto também delineia um “método sinodal” de espiritualidade centrado na escuta do Espírito Santo e no “discernimento dos sinais dos tempos”.
O documento de 50 páginas foi escrito por um comitê de 22 pessoas entre abril e maio e aprovado pelo papa Francisco. O próprio texto destaca que “não é um documento do magistério da Igreja, nem é o relatório de uma pesquisa sociológica”, mas apresenta as “prioridades que surgiram da escuta do Povo de Deus” no processo sinodal global até agora.
O Instrumentum Laboris guiará as discussões na assembleia sinodal que reunirá bispos, padres, religiosos e leigos católicos de todo o mundo em outubro para discutir e preparar outro documento.
Os delegados para a assembleia sinodal de outubro ainda não foram anunciados. Pela primeira vez, cerca de 21% dos delegados votantes no Sínodo dos Bispos não serão bispos, e 70 delegados serão escolhidos diretamente pelo papa entre uma lista de 140 leigos, padres, mulheres consagradas e diáconos selecionados pela liderança das reuniões do sínodo continental deste ano.
O principal objetivo da primeira sessão de outubro de 2023, segundo o Instrumentum laboris , será elaborar um plano de estudo em “estilo sinodal” e indicar quem estará envolvido nessas discussões. O discernimento será “concluído” na sessão do sínodo de 2024.
O documento consultivo final ao fim do processo em 2024 será votado pelos participantes da assembleia sinodal e apresentado ao papa. O papa pode decidir, se desejar, adotar o texto como um documento papal ou escrever o seu próprio na conclusão do sínodo.
Ressaltando o escopo possivelmente de longo alcance das discussões da assembleia, o documento enfatiza que o reaparecimento de questões já abordadas em sínodos anteriores “não deve ser descartado às pressas”, observando que uma assembleia sinodal é “um fórum privilegiado” para discutir essas questões novamente.
Novas preocupações que requerem “voltar a interrogar o Depósito da fé e a Tradição viva da Igreja” também podem surgir, diz o instrumento.
O papel da mulher, inclusão, celibato sacerdotal
O Instrumentum laboris é dividido em duas seções. A primeira resume as percepções das assembleias continentais e descreve o que é uma Igreja sinodal e como ela deve proceder. A segunda seção é uma série de 15 planilhas com perguntas para discernimento.
As planilhas serão usadas para guiar as discussões em pequenos grupos da assembléia de outubro. Os pequenos grupos, também chamados de circuli minores, se alternarão com as sessões plenárias, nas quais estarão reunidos todos os participantes do sínodo.
A última parte da reunião de outubro se concentrará em decidir os próximos passos da Igreja e “os estudos teológicos e canônicos aprofundados necessários em preparação” para uma segunda assembleia em outubro de 2024.
“A Assembleia Sinodal de outubro de 2023 será convidada a ouvir profundamente as situações em que a Igreja vive e realiza sua missão”, afirma o documento.
“O que significa caminhar juntos ganha sua urgência missionária quando esta pergunta é feita em um contexto particular com pessoas e situações reais em mente”, continua. “O que está em jogo é a capacidade de anunciar o Evangelho caminhando junto com os homens e mulheres do nosso tempo, onde quer que estejam, e praticando a catolicidade que nasce do caminhar junto com as Igrejas que vivem em condições de particular sofrimento”.
Entre as prioridades delineadas no documento está o papel da mulher na Igreja. Uma das “fichas de trabalho” que acompanha o texto propõe a seguinte questão para o discernimento: “A maioria das Assembleias Continentais e as sínteses de várias Conferências Episcopais pedem que se considere a questão da inclusão da mulher no diaconato. É possível imaginar isso e de que maneira?”
O documento sinodal também propõe sugestões de oração e reflexão preparatórias: “Como podemos criar espaços em que aqueles que se sentem magoados pela Igreja e não bem-vindos pela comunidade possam sentir-se reconhecidos, acolhidos, não julgados e livres para fazer perguntas? À luz da Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris laetitia, que passos concretos são necessários para chegar às pessoas que se sentem excluídas da Igreja por causa da sua afetividade e sexualidade (por exemplo, divorciados recasados, pessoas em casamentos polígamos, pessoas LGBTQ+, etc.)”?
Outra questão recomendada para oração e reflexão refere-se à disciplina do celibato sacerdotal. “É possível, como propõem alguns continentes, abrir uma reflexão sobre a possibilidade de rever, pelo menos em algumas áreas, a disciplina de acesso ao sacerdócio para homens casados, pelo menos em algumas áreas?” o documento pergunta.
O texto faz repetidas referências às “tensões” surgidas ao longo do processo sinodal, mas aponta-as como parte positiva e necessária do discernimento do caminho da Igreja.
“Não devemos nos assustar com eles, nem tentar resolvê-los a qualquer custo, mas nos engajar no discernimento sinodal contínuo”, diz o documento. “Só assim essas tensões podem se tornar fontes de energia e não cair em polarizações destrutivas”.
Autoridade na Igreja
O “exercício da autoridade na Igreja” surge como um tema importante no Instrumentum laboris.
“Em todas as épocas, o exercício da autoridade e da responsabilidade na Igreja é influenciado pelos modelos de gestão e imagens de poder vigentes na sociedade”, observa o texto. “Como podemos tomar consciência disso e exercer um discernimento evangélico sobre as práticas vigentes de exercício da autoridade, na Igreja e na sociedade?”
Uma pergunta proposta para o discernimento para o Sínodo dos Bispos pergunta “o que podemos aprender sobre o exercício da autoridade e responsabilidade de outras Igrejas e comunidades eclesiais?”
Outra pergunta é: “Como lidar construtivamente com os casos em que as autoridades sentem que não podem confirmar as conclusões de um processo de discernimento comunitário, tomando uma decisão em uma direção diferente? Que tipo de restituição essa autoridade deve oferecer aos que participaram do processo?”
Ainda outra questão se coloca: “Que estímulos de culturas indígenas, minoritárias e oprimidas podem nos ajudar a repensar nossos processos de tomada de decisão?”
O texto também propõe discernir como a consciência de que uma Igreja sinodal precisa de corresponsabilidade e transparência pode “formar a base para a reforma das instituições, estruturas e procedimentos, a fim de fortalecer a mudança ao longo do tempo”. Em particular, menciona o desejo expresso de “procedimentos de seleção mais participativos, especialmente no que diz respeito à seleção dos bispos”.
‘Diálogo no Espírito’
O documento também dedica uma quantidade significativa de espaço, incluindo uma ilustração de página inteira, ao conceito de “diálogo no Espírito”, que chama de “método sinodal”.
O “diálogo no Espírito” é descrito como um processo de oração pessoal, escuta, partilha, espaço para os outros e para o Espírito Santo e discernimento grupal em clima de oração.
“Não é diálogo no Espírito”, diz o documento, “se não houver um passo à frente em uma direção precisa, muitas vezes inesperada, que aponta para uma ação concreta”.
O Instrumentum laboris apela à “formação neste método” para todos os batizados e à formação de “facilitadores” que possam acompanhar as comunidades na sua prática.
“A formação para o diálogo no Espírito é a formação para ser uma Igreja sinodal”, diz.
Uma pergunta é se a conversa no Espírito pode ajudar “a renovação dos processos de tomada de decisão na Igreja” e se a lei canônica precisa mudar para facilitar esse processo.
O documento pede a renovação do currículo do seminário da Igreja para incluir um maior foco em “um estilo e mentalidade sinodal”, bem como mudanças na linguagem usada na liturgia, pregação, catequese, arte sacra, comunicação e mídia.
Destaca a formação de todo católico como “meio indispensável para fazer do modo de proceder sinodal um modelo pastoral para a vida e a ação da Igreja”.
“A formação para uma espiritualidade sinodal mais genuína está no centro da renovação da Igreja”, diz o texto.
O cardeal jesuíta Jean-Claude Hollerich, relator no Sínodo sobre a Sinodalidade, disse em uma entrevista ao Vatican News em abril que o discernimento no Sínodo é um “processo espiritual”.
“E é por isso que temos esta conversa espiritual, ou melhor, esta conversa no Espírito: é uma forma de ouvir e de dialogar, não com uma atitude de oposição, para chegar a uma conclusão comum”.
“Está claro”, acrescentou Hollerich, “que há sempre uma necessidade de conversão neste processo: às vezes é o bispo que deve se converter, às vezes é o leigo que também deve se converter”.
O “diálogo espiritual”, que foi já mencionada em outros documentos relacionados ao sínodo, vem da espiritualidade inaciana praticada pelos jesuítas, como o papa, e está ligada aos Exercícios Espirituais de santo Inácio de Loyola.
Fonte: ACI Digital